Quais são as nossas obras?


Uma das frases que cito reiteradamente em aulas e palestras é esta passagem bíblica: “Pelas vossas obras, vos conhecerei”, por sua clareza em expressar um caminho simples de autoconhecimento através de nossa conduta moral. Porém, como tudo, num mundo dual, está sujeito a erros de interpretação, ontem, graças à colocação de um aluno de Filosofia, fui levada a questionar minha compreensão dessa máxima.

O aluno em questão, no meio de uma pergunta, deixou escapar a seguinte expressão: “(...) me refiro àqueles de desenvolvimento moral inferior, como os assassinos...”. De repente, me veio um sonoro “click”, e algo me pareceu meio inconsistente e até ingênuo, em nossa visão de mundo.

Há tanto tempo, como insistente aspirante a filósofa, venho buscando praticar o “Conhece-te a ti mesmo”, frase do pórtico do templo grego de Delfos, e penso ser essa uma busca mais que legítima  e bem intencionada. Mas ocorre que, no fundo, somos um pouco como aqueles cachorrinhos do interior, que correm atrás da roda do carro e não sabem o que fazer com ela, quando o carro para.

Quando finalmente, depois de tanto procurar, vemos algo de nós, quando algum poder latente aflora, ele é Poder, força bruta a ser lapidada, e tende a nos assustar. E aí, vem a descoberta óbvia, mas agora, prática: o “Conhece-te a ti mesmo” deve ser completado pelo “Domina-te a ti mesmo”. São leões que emergem em nós, e não o fazem porque cometemos erros, mas simplesmente porque...os procuramos! E aí, podem ser uma potência de tração arrasadora, ou...loucura e morte.  Não posso deixar de lembrar da Deusa frígia Cibeles e seu carro conduzido por leões domados, e o fato dela ter devolvido a lucidez a Dionísio, deus grego, filho de uma mortal, que se torna capaz de derrotar titãs.

Não sei se me expresso bem; o homem que não experimentou ter nada, em geral, nada ambiciona. E aí, um dia, tenho uma bicicleta, e ela facilita em muito a minha vida, até que passa por mim alguém com um veloz e confortável carro modelo sport.  Se esse sonho material é o único que conheço e através do qual se expressam meus desejos, posso me mobilizar para conquistar estes bens, ou, por fragilidade moral, culpar e odiar a quem os tem, e querer tomá-lo para mim à força...

Um dia, nossos desejos e ambições passam para o plano psíquico: provo de sonhos de valor e honra, dos ideais humanos em geral, e anseio por construí-los como algo permanente e concreto. Ao caminhar para construí-los, chegará o dia em que, de tanto querer vê-los, verei que esse ideal, fora do plano das ideias, é feito de homens e, portanto, falho e incompleto, em mim e nos outros. Posso lutar para torná-lo forte em mim mesmo, ou... condenar os outros por traírem meus sonhos. É uma dor que pode conduzir à decepção, à revolta e à violência.

Imagino ainda, mais adiante, um dia em que teremos ardentes necessidades espirituais: “provaremos” de Deus, e sairemos buscando por Ele em todos os lugares; ao não encontrá-lo de forma completa e absoluta em lugar nenhum, mas só “pitadas” misturadas a outras coisas, talvez venham os leões... acusaremos deus e o mundo por poluir Deus, antes de purificá-lo em nós. Mas isso é futuro, pois nossa capacidade de “´provar de Deus” para depois desejá-lo ardentemente ainda é escassa, e temos mais teorias a respeito que quaisquer outras coisas.

Uma coisa é certa: se caminho, na trajetória humana natural de buscar aquilo pelo qual anseio, um dia, despertarão os leões... o que farei com eles? Talvez sejam estas obras através das quais “alguém” nos conhecerá: domaremos nossos leões? Ou traremos mais feras selvagens ao mundo? Obras materiais, há muitas, e pouca diferença fazem em relação ao drama humano. Essa é a obra essencial que definirá nossa vida.

Perceba: os impotentes e débeis não têm leões, mas isso não é virtude! No nosso medo do poder, achamos que fugir dele é seguro, pois “o poder corrompe”; mas poder é vida! é poder ser e poder construir... ou destruir e arrasar. O máximo símbolo de poder é Deus, o Grande Poder Domado por Si Mesmo, a serviço dos Cosmos, da Vida, da Harmonia.... nosso Pai e exemplo. Sim, o poder descontrolado é meio “demoníaco”... mas a impotência é morte permanente.

“Conhece-te a ti mesmo”, “Domina-te a ti mesmo” e “Pelas vossas obras, vos conhecerei”. Talvez assim, concatenadas, estas três máximas desvelem uma parte do mistério do ser humano. Mas cuidado! Que não sejamos nós, no alto de uma comodista e segura impotência, a condenar aqueles que foram devorados por seus leões; eles simplesmente tentaram e foram derrotados... terão outras chances. Qual será nosso prognóstico, quando resolvermos levantar de nossa cômoda posição  de “juízes do mundo” e formos atrás de nossos próprios leões? Em que eles podem nos transformar, se não forem domados? Ou pensamos que todos os que mataram e destruíram, no mundo... queriam apenas carros sport? Dizia minha simplória mas sábia avó: “Quanto mais alto o tronco, maior a queda”...

É sempre bom lembrar que ingenuidade não é pureza, e sim arrogante inexperiência. Que Cibeles nos devolva a lucidez, e nos dê, talvez...uma boa dose de humildade e de "pulso" para conduzir leões...

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