Minha mão pousava suavemente sobre a cama...



... e  eu me detive a olhar para ela. Não deve haver tantas ferramentas muito mais perfeitas do que uma mão humana, dentro do que conhecemos da natureza.  A minha “ferramenta perfeita”, com 51 anos de uso, repousava docilmente, neste momento, à espera de novos comandos, e tinha algo belo de se ver, algum segredo que me chamava a atenção, como se tivesse uma história guardada para me contar.
Então, lembrei-me de uma carta do tarô egípcio, onde a Morte ceifava pedaços de corpos que se elevavam acima da terra (mãos, cabeças, pés...), ou seja, daquilo que se ergueu acima do banal e deixou obras duradouras. Senti a curiosidade, neste momento, de dialogar com minha mão sobre quais de suas obras, se é que há alguma, se enquadraria nesta honrosa posição.
Mãos possuem marcas que ajudam bastante a memória. As marcas não são só cicatrizes, mas os traços deixados pelas vezes em que ela se abriu e fechou, em que atuou e em que se recolheu, em que pousou sobre o meu coração, sondando novos caminhos, mais profundos e verdadeiros, e em que se estendeu para o céu e para a terra, para as quatro  ou mil direções, minhas expressivas mãos, sempre buscando, mas nem sempre logrando atingir seu objetivo.
Alguns corpos suaves e ásperos e  sabores doces e amargos trazidos à boca são também lembrados. Corpos tocados, alguns deles, que já não existem mais, e minha mão se inquieta, lembrando-os, no vazio, tateando mistérios; sabores que ecoaram e foram gravados na pele, no estômago, na mente, no coração. A intenção da minha mão, porém, por trás de todos estes movimentos, resumiu-se sempre à dualidade de aproximar ou afastar, e, nesses momentos, ela foi regida apenas por dois Senhores, que ainda existem, em guerra, dentro de mim. No contraste permanente entre os dois, nasce minha consciência e identidade.
O Senhor da Separação procurou afastar de mim o que me feria e ameaçava, o que me era desagradável; empurrou para longe de mim muitas coisas por segurança, mas outras por puro capricho e desejo de conforto físico e psicológico, e me fez contabilizar muitas perdas. Mas o Senhor da Unidade... este me fez mergulhar minhas mãos dentro de mim para extrair a gota sagrada, e estendê-la em muitas direções. Este me fez acalentar minhas esperanças no berço das noites, quando estas se faziam muito escuras... Este me fez cobrir meus olhos para obrigá-los a fecharem-se e abrirem-se novamente, na conhecida tática de “dar um novo start” em tudo aquilo que não funciona muito bem. Este me fez tocar em tantos rostos, tantos ombros, e colher, com a mão em concha, lágrimas perdidas, para tornar a encontrá-las, quando necessário, e tocar a terra molhada e o mar agitado, experimentando, neles, aromas que não se esquece.
Diante do grande “achados e perdidos” da minha memória, da trajetória das minhas mãos, esta soma de impressões me faz crer que a balança pende para o lado de algo, muito pequeno mesmo, mas precioso, que o tempo não varrerá, e essa talvez seja a mais sagrada de todas as constatações. E minha mão se ergue e pressiona forte meu coração, quem sabe se para gravar nele, fundo, essa impressão, fruto mais valioso da minha vida. E talvez, nesse ato singelo, minha mão encontre uma síntese de todas as suas obras. Quiçá um átomo da minha vida, simples, mas coeso, há de brotar sobre a terra, quando tudo, mãos, coisas, sensações e pensamentos, tiverem cumprido seu inexorável destino de deixar de ser; minha mão e meu coração sabem: algo ainda Será. 


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